segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

Território do imaginário




O escritor Affonso Romano de Sant’Anna aborda diversos temas durante palestra em Divinópolis



O mineiro Affonso Romano de Sant’Anna confessa  entrar em transe quando escreve


Marlene Gandra
marlenecult@hotmail.com

Autor de mais de 40 livros, Affonso Romano de Sant’Anna, nascido em Belo Horizonte em 1937, domiciliado no Rio de Janeiro, vive em palestras pelos continentes. Foi professor na Universidade do Texas (Estados Unidos), na Universidade de Colônia (Alemanha), na Universidade de Aix-en-Provence (França), entre outras do exterior, incluindo na Espanha.     
Em palestra no dia 1 dezembro no auditório da Faculdade Pitágoras, trazido pela Secretaria Municipal de Cultura de Divinópolis - que tem Bernardo Rodrigues como secretário -, relatou que o escritor não suporta a realidade e cria outra. “Dentro da gente há uma troca de energia. Esta energia tem que ser gasta no imaginário. A literatura é um mistério. Principalmente a poesia infiltra na vida das pessoas e muda seu cotidiano. Mas é nela que sabemos quem é a sociedade. Não posso pensar na literatura sem pensar na realidade”, diz Affonso.
Ele cita o assunto internacional do momento, a operação policial na guerra contra o tráfico de drogas no Complexo do Alemão (comunidade de 400 mil pessoas), na cidade onde mora. “Muitos pensam que este enfrentamento da realidade não tem nada a ver com o escritor. Mas tem tudo a ver. O que acontece no Complexo do Alemão é um estágio que se chama Esgoto Comportamental. Isto é, situação de estresse total. A cadeia é o esgoto comportamental.”
Citou ratos como cobaia. “Nos laboratórios, para fazerem pesquisas, impõem que os ratos mudem seu comportamento, inclusive o erótico e sexual. O tráfico faz isso, impõe à comunidade a maneira perversa de ver o mundo. Os símbolos culturais são muito fortes. Como sair do esgoto comportamental? Como sair do ajuntamento (aglomerado de casas e gente)? Meu livro Que País é Este?, lançado em 1980, retrata bem esta realidade. De abril para cá lancei esta obra em mais de 30 cidades do Brasil. Viajando pelo mundo, vejo que esta pergunta existe em todo lugar. Na Alemanha, Estados Unidos, Espanha, Canadá, todos dizem a mesma coisa. O ex-governador de Minas Gerais, Francelino Pereira, disse. Castro Alves. Monteiro Lobato. Descobri que esta pergunta é universal. E que a resposta eu não posso dar. Cada um dá resposta provisória. Este livro, comecei a escrever em 1965 quando dava aulas na Califórnia (EUA). Na época, o Brasil só tinha vontade de ser grande país. A única coisa que os norte-americanos conheciam do Brasil era Pelé”, explica.

Affonso viu os Beatles

De todas as suas andanças, Affonso se empolga ao dizer que viu os Beatles na Califórnia. “Eu vi os Beatles! Vi os quatro! Eles existem! Fui a um concerto deles! A Califórnia me marcou!” Destaca que nos EUA existiam coisas que não tinham no Brasil: “homossexual, lésbica, índio, uma série de personagens que fingíamos não conhecer.”
Falou que naqueles tempos a história não deixava dúvidas. “Você pegava um trem e sabia aonde chegar. Acreditávamos que a história não tinha erros, a gente nem questionava. Nos EUA, descobri que a história é múltipla. Isso desorientou muita gente. O povo é um conjunto heterogêneo.”

“O analfabeto tem grande visão”

Affonso Romano de Sant’Anna confessou que não é petista, mas falou do atual presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva. “Votei no Fernando Henrique Cardoso (governou de 1 de janeiro de 1995 a 1 de janeiro de 2003), na época, para presidente do Brasil, porque ele prometeu apoiar a Cultura. Intelectual, conhecia tudo do nosso país. No entanto, ele nada fez. Em especial pela cultura. De repente chega Lula ao poder, um semianalfabeto, um operário que nem gosta de ler. E olha o que ele fez por este país. O nível de crescimento foi grande em todas as áreas. Apoia a cultura. O analfabeto tem uma visão muito grande para dar a nossa sociedade. Ele percebe coisas que não percebemos. Ele lê na leitura dos outros.”
Neste momento, houve interferência do secretário municipal de Cultura, Bernardo Rodrigues, que disse: “E quanto ao deputado federal mais votado do Brasil nas últimas eleições, o Tiririca, tentando provar que não é analfabeto? O povo não votou na realidade, votou num personagem.” Afonso responde: “A ficção muitas vezes supera a realidade. Citando o Complexo do Alemão, uma poesia sobre a guerra do tráfico pode comover mais que uma reportagem na TV. Porque o leitor imagina além da realidade”, afirma um dos mais consagrados escritores brasileiros, Affonso Romano de Sant’Anna.
  
Arte vazia

Em tempos remotos as obras literárias eram poucas, mas valiosas. Tanto é, que os clássicos estão em todas as bibliotecas e escolas. “A sociedade sempre teve um mecanismo. Cada época há um processo de seleção. E na atual, com a internet, há infinitos meios: facebook, twitter, orkut e outros sites. Como vamos fazer com esta cultura que produz tão veloz!”, indaga Romano.
Informa que o Brasil publica 40 mil novos livros por ano. “Os autores estão muito complicados. A quantidade supera a qualidade. A quantidade de oferta é muito grande. Há tantos blogs, que creio que ninguém tem tempo para ler blog do outro. O twitter, uma linguagem vazia. Fiz um, fiquei apenas uma semana. Não têm conteúdo as frases que os seguidores deixam. Estamos num paradoxo vicioso. O vazio está ocupando espaço. E os internautas até pegam nossos textos e interferem, para pior, claro. Os mais prejudicados são Clarice Lispector, Carlos Drummond de Andrade e Jorge Luís Borges. E alguns escrevem textos ou poesias e colocam nosso nome.”
Ele cita que os perfis em sites de relacionamentos, uma infinidade deles, falsa, e com tantos seguidores, que às vezes o artista verdadeiro passa a ser seguidor do seu próprio perfil inventivo. “Não sei aonde vamos parar”, exclama Romano.

Em transe

Sant’Anna ilustra que a questão de escrever é a da observação. “Preste atenção em tudo. Onde há gente e situações, há poesia. Temos que afinar a personalidade, os sentidos. Cada escritor tem suas manhas. Uns não escrevem sem camisa ou sapatos. Outros só em pedaços de papel. E assim vai. Quando um escritor se concentra, parece que entra em transe. Fica na quarta dimensão. É como se uma pessoa ditasse a ele”. E completa: “Uma poesia drenada no meio da noite ou do dia. A gente fica possuído, enlouquecido. Perde a noção onde é o corpo e onde é o mundo. Recebemos uma vibração. Vamos ao telefone, à geladeira, abrimos uma porta, mas esta coisa infiltra na gente e perguntamos: estamos fugindo de quê? E aí temos que escrever.”
Segundo Affonso, o artista tem que estar imbuído de humildade. “O texto só tem força se muda algo. A verdadeira literatura vem de dentro para fora.”

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